terça-feira, 29 de abril de 2008

a seta e o alvo

me!!!


Eu falo de amor à vida,
Você de medo da morte.
Eu falo da força do acaso
E você de azar ou sorte.
Eu ando num labirinto
E você numa estrada em linha reta.
Te chamo pra festa,
Mas você só quer atingir sua meta.
Sua meta é a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.
Eu olho pro infinito
E você de óculos escuros.
Eu digo: "Te amo!"
E você só acredita quando eu juro.
Eu lanço minha alma no espaço,
Você pisa os pés na terra.
Eu experimento o futuro
E você só lamenta não ser o que era.
E o que era?
Era a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.
Eu grito por liberdade,
Você deixa a porta se fechar.
Eu quero saber a verdade
E você se preocupa em não se machucar.

Eu corro todos os riscos,
Você diz que não tem mais vontade.
Eu me ofereço inteiro
E você se satisfaz com metade.

É a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa não te espera!
Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?
Sempre a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.
Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?


Paulinho Moska e Nilo Romero

you...


joão-bobo



Volta por cima

Chorei
Não procurei entender
Todos viram, fingiram
Pena de mim não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava
[Um homem] de moral
Não fica no chão
Nem quer que [mulher]
Lhe venha dar a mão
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima!
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima!

Paulo Vanzolini (1962)

sábado, 26 de abril de 2008

para ser grande


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis), “Poesia Completa”, 1992

o meu mundo

O meu mundo não é como o dos outros.
Quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito,
uma angústia constante que nem eu mesma compreendo,
pois estou longe de ser uma pessimista;
sou antes uma exaltada, com uma alma intensa,
violenta, atormentada,
uma alma que não se sente bem onde está,
que tem saudade...sei lá de que!

Florbela Espanca, “Cartas de Florbela Espanca (a D. Júlia Alves e a Guido Battelli)”, 1931

today's fortune

Youthful Folly

Examine your attitude and observe how you deal with the mistakes of others. You must let people live their own lives and learn their own lessons. Offer others your wisdom or advice, but only if they are receptive. Otherwise, give up trying to convince them that you are right - that is only exhausting and counter-productive. If people are not receptive, let them proceed - even into difficulty or dangerous circumstances. It is the only way they can learn - and without learning, no one can achieve success. This does not mean that you should not care - just that taking care of someone too much can be harmful. Live and let learn.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

gota d' água

Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa

Por favor...

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa

E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água..

Paulo Pontes e Chico Buarque, "Gota d' Água" (1975)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

cogito


eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.

Torquato Neto, "Os Últimos Dias de Paupéria" (1973)

gato ao crepúsculo

welcome home, Dengs!!


Poeminha de louvor ao pior inimigo do cão

Gato manso, branco,
Vadia pela casa,
Sensual, silencioso, sem função.
Gato raro, amarelado,
Feroz se o irritam,
Suficiente na caça à alimentação.
Gato preto, pressago,
Surgindo inesperado
Das esquinas da superstição.
Cai o sol sobre o mar.
E nas sombras de mais uma noite,
Enquanto no céu os aviões
Acendem experimentalmente suas luzes verde-vermelho-verde,
Terminam as diferenças raciais.
Da janela da tarde olho os banhistas tardos
Enquanto, junto ao muro do quintal,
Os gatos todos vão ficando pardos.


Millôr Fernandes

terça-feira, 22 de abril de 2008

biografia do orvalho

A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas.

Manoel de Barros, “Retrato do Artista Quando Coisa” (1998)

segunda-feira, 21 de abril de 2008

beatriz


Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva para sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se um arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida

Edu Lobo e Chico Buarque, 1982


"Não sei porque sorri de repente.
É um gosto de estrela me veio à boca..."

Mario Quintana






Beatrix:"aquela que torna feliz"





Stagium Dança Chico Buarque - Beatriz

fala



tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

tudo será
capaz de ferir. será
agressivamente real.
tão real que nos despedaça.

não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(toda palavra é crueldade).

Orides Fontela, “Poesia Reunida (1969-1996)”, 2006

monday mood III


Hoje é 2ª feira?
Meu Deus, como eu fui perder a 1ª feira?

Mario Quintana

domingo, 20 de abril de 2008

running through the garden


Until she herself
Became the deadliest poison
As she grew older
Ohh until she herself
Became just as fatal
As was her garden

And so you run towards
What you know is wrong
There are too many flowers to cut down
For the love I have for your life
For the love I have for your life
Turn around

Never did I mean to
Imprison you
Here in my garden
Like I am in prison
For the love I have for your life
For the love I have for your life
Turn around

Until she herself
Understood her garden
Leaving her heart broken
No future at all
Until she herself
Became the toxic garden
Always frightened
No future at all

And so you run towards
What you know is wrong
There are too many flowers to cut down
For the love I have for your life
For the love I have for your life
Turn around

Never did I mean to
Imprison you
Here in my garden
Like I am in prison
For the love I have for your life
For the love I have for your life
Turn around

So you run towards
What you know is wrong
But there are too many flowers to cut down
For the love
I have for your life
For the love I have for your life
Turn around

Running through the garden
(Running through the garden)
I’m running in brilliant colors
(Brilliant colors)
I’m running straight towards
Straight towards
What you know is really wrong
(really wrong)
Too many flowers
(too many flowers)
Here to cut down
For the love I have for your life
Turn around

Fleetwood Mac, "Say You Will" (2003)

sábado, 19 de abril de 2008

elegia ao primeiro amigo

(...)
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo para beijar; meus olhos
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele das mulheres.
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.
(...)

Vinícius de Moraes, “Cinco Elegias” (1943)

puzzle II

Eu sou à esquerda de quem entra.
E estremece em mim o mundo.
(...)
Sou caleidoscópica:
fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro.

Sou um coração batendo no mundo.

Clarice Lispector

sobre importâncias


...que a importância de uma coisa não se mede
com fita métrica nem com balanças
nem barômetros etc.


Que a importância de uma coisa há que ser medida
pelo encantamento que a coisa produz em nós.

Manoel de Barros, " Memórias inventadas: a segunda infância" (2006)

linger


If you, if you could return, don't let it burn, don't let it fade.
I'm sure I'm not being rude, but it's just your attitude,
It's tearing me apart, It's ruining everything.

I swore, I swore I would be true, and honey, so did you.
So why were you holding her hand? Is that the way we stand?
Were you lying all the time? Was it just a game to you?

But I'm in so deep. You know I'm such a fool for you.
You got me wrapped around your finger, ah, ha, ha.
Do you have to let it linger?
Do you have to, do you have to,
Do you have to let it linger?


Oh, I thought the world of you.
I thought nothing could go wrong,
But I was wrong. I was wrong.
If you, if you could get by, trying not to lie,
Things wouldn't be so confused and I wouldn't feel so used,
But you always really knew, I just wanna be with you.


But I'm in so deep. You know I'm such a fool for you.
You got me wrapped around your finger, ah, ha, ha.
Do you have to let it linger?
Do you have to, do you have to,

Do you have to let it linger?

And I'm in so deep. You know I'm such a fool for you.
You got me wrapped around your finger, ah, ha, ha.
Do you have to let it linger?
Do you have to, do you have to,

Do you have to let it linger?


You know I'm such a fool for you.
You got me wrapped around your finger, ah, ha, ha.
Do you have to let it linger?
Do you have to, do you have to,

Do you have to let it linger?

The Cranberries (Dolores O'Riordan, Noel Hogan)
in Everybody Else is Doing It, So Why Can't We? (1993)


sexta-feira, 18 de abril de 2008

a bailarina

para a Bia... bem-vinda a bordo!!!!


Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.
Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.
Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.


Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta nem sai do lugar.
Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.

Cecília Meireles, "
Ou Isto ou Aquilo" (1964)


quinta-feira, 17 de abril de 2008

as mulheres de 30


O que mais as espanta é que, de repente, elas percebem que são balzaquianas. Mas poucas balzacas leram A Mulher de Trinta, do Honoré de Balzac, escrito há mais de 150 anos. Olhe o que ele diz:

“Uma mulher de trinta anos tem atrativos irresistíveis. A mulher jovem tem muitas ilusões, muita inexperiência. Uma nos instrui, a outra quer tudo aprender e acredita ter dito tudo despindo o vestido. (...) Entre elas duas há a distância incomensurável que vai do previsto ao imprevisto, da força à fraqueza. A mulher de trinta anos satisfaz tudo, e a jovem, sob pena de não sê-lo, nada pode satisfazer”.

Madame Bovary, outra francesa trintona, era tão maravilhosa que seu criador chegou a dizer diante dos tribunais: “Madame Bovary c’est moi”. E a Marylin Monroe que fez tudo aquilo entre 30 e 40?

Mas voltemos à nossa mulher de trinta, a brasileira-tropicana, aquela que podemos encontrar na frente das escolas pegando os filhos ou num balcão de bar bebendo um chope sozinha. Sim, a mulher de trinta bebe. A mulher de trinta é morena. Quando resolve fazer a besteira de tingir os cabelos de amarelo-hebe passam, automaticamente a terem 40. E o que mais encanta nas de trinta é que parecem que nunca vão perder aquele jeitinho que trouxeram dos 20. Mas, para isso, como elas se preocupam com a barriguinha.

A mulher de trinta está para se separar. Ou já se separou. São raras as mulheres que passam por esta faixa sem terminar um casamento. Em compensação, ainda antes dos quarenta elas arrumam o segundo e definitivo. A grande maioria tem dois filhos. Geralmente um casal. As que ainda não tiveram filhos se tornam um perigo, quando estão ali pelos 35. Periga pegarem o primeiro quarentão que encontrarem pela frente. Elas querem casar.

Elas talvez não saibam, mas são as mais bonitas das mulheres. Acho até que a idade mínima para concurso de miss deveria ser 30 anos. Desfilam como gazelas, embora eu nunca tenha visto uma (gazela). Sorriem e nos olham com uns olhos claros. Já notou que elas têm olhos claros? E as que usam uns cabelos longos e ondulados e ficam a todo o momento jogando as melenas para trás? É de matar.

O problema com esta faixa de idade é achar uma que não esteja terminando alguma tese ou TCC. E eu pergunto: existe algo mais excitante do que uma médica de 32 anos, toda de branco, com o estetoscópio balançando no decote do seu jaleco diante daqueles hirtos seios? E mulher de trinta guiando jipe? Covardia.

A mulher de trinta ainda não fez plástica. Não precisa. Está com tudo em cima. Ela, ao contrário das de vinte, nunca ficaram. Quando resolvem vão pra valer. Fazem sexo como se fosse a última vez. A mulher de trinta morde, grita, sua como ninguém. Não finge. Mata o homem, tenha ele vinte ou 50. E o hálito, então? É fresco. E os pelinhos nas costas, lá pra baixo, que mais parecem pele de pêssego, como diria o Machado se referindo a Helena que, infelizmente, nunca chegou aos 30?

Mas o que mais me encanta nas mulheres de trinta é a independência. Moram sozinhas e suas casas têm ainda um frescor das de 20 e a maturidade das de 40. Adoram flores e um cachorrinho pequeno. Curtem janelas abertas. Elas sabem escolher um travesseiro. E amam quem querem, a hora que querem e onde querem. E o mais importante: do jeito que desejam.

São fortes as mulheres de trinta. E não têm pressa pra nada. Sabem onde vão chegar. E sempre chegam.

Chegam lá atrás, no Balzac: “a mulher de trinta anos satisfaz tudo”.

Ponto. Pra elas.

Mário Prata, crônica na revista Época, 30/01/2004

terça-feira, 15 de abril de 2008

tanto

Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.
O dia vai morrer aberto em mim.

Manoel de Barros

como dizia o poeta


Quem já passou por essa vida e não viveu

Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não

Vinícius de Moraes, "Como dizia o poeta" (1971, RGE LP)

'preciosa'


Canção na plenitude

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.

Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.

Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

Lya Luft, "Secreta Mirada" (1997)

alma luz


Minha alma tem o peso da luz.
Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita.
Tem o peso de uma lembrança.
Tem o peso de uma saudade.
Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência.
E a lágrima que não se chorou.
Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.

Clarice Lispector

(no livro "Clarice: Uma Vida que se Conta", de Nadia Battella Gotlib, 1995)

a poesia dentro de mim

- Matei a poesia que morava dentro de mim. Encurralei-a e a destrocei a golpes de machado (de Assis). Vi sua alma esquivar-se de seu corpo gordo e alexandrino e recitar, em forma de soneto, seu testamento que mais me pareceu uma maldição. “Deixo-te teus pensamentos, a sós” disse o fantasma.
Tenho certeza que subiu aos céus, aquela alma. Deve ter se tornado o mais augusto dos anjos.
Nossa! Que alívio! Cá estou, apoético!

Augusto Galery

monday mood II

Odeio quem me rouba a solidão
sem em troca me oferecer
verdadeira companhia.

Nietzsche

monday mood

Men become old,
but they never become good


Oscar Wilde

segunda-feira, 14 de abril de 2008

mania de explicação

Era uma menina que gostava de inventar uma explicação para cada coisa. Explicação é uma frase que se acha mais importante do que a palavra. Ela achava o mundo meio complicado e achava que se simplificasse as coisas em sua cabeça seria mais fácil e legal. As pessoas até se irritavam, irritação é um alarme de carro que dispara bem no meio de seu peito, com aquela menina explicando o tempo todo o que a população inteira já sabia. Quando ela se dava conta, todo mundo tinha ido embora. Então ela ficava lá, explicando, sozinha.

Solidão é uma ilha com saudade de barco.
Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue.

Lembrança é quando, mesmo sem autorização, seu pensamento reapresenta um capítulo.
Autorização é quando a coisa é tão importante que só dizer "eu deixo" é pouco.

Pouco é menos da metade.
Muito é quando os dedos da mão não são suficientes.

Desespero são dez milhões de fogareiros acesos dentro de sua cabeça.
Angústia é um nó muito apertado bem no meio do sossego.

Agonia é quando o maestro de você se perde completamente.
Preocupação é uma cola que não deixa o que não aconteceu ainda sair de seu pensamento.

Indecisão é quando você sabe muito bem o que quer mas acha que devia querer outra coisa.
Certeza é quando a idéia cansa de procurar e pára.

Intuição é quando seu coração dá um pulinho no futuro e volta rápido.
Pressentimento é quando passa em você o trailer de um filme que pode ser que nem exista.

Renúncia é um não que não queria ser ele.
Sucesso é quando você faz o que sempre fez só que todo mundo percebe.

Vaidade é um espelho onisciente, onipotente e onipresente.
Vergonha é um pano preto que você quer pra se cobrir naquela hora.

Orgulho é uma guarita entre você e o da frente.
Ansiedade é quando faltam cinco minutos sempre para o que quer que seja.

Indiferença é quando os minutos não se interessam por nada especialmente.
Interesse é um ponto de exclamação ou de interrogação no final do sentimento.

Sentimento é a língua que o coração usa quando precisa mandar algum recado.
Raiva é quando o cachorro que mora em você mostra os dentes.
Tristeza é uma mão gigante que aperta seu coração.

Alegria é um bloco de Carnaval que não liga se não é fevereiro.
Felicidade é um agora que não tem pressa nenhuma.

Amizade é quando você não faz questão de você e se empresta pros outros.
Decepção é quando você risca em algo ou em alguém um xis preto ou vermelho.

Desilusão é quando anoitece em você contra a vontade do dia.
Culpa é quando você cisma que podia ter feito diferente, mas, geralmente, não podia.

Perdão é quando o Natal acontece em maio, por exemplo.
Desculpa é uma frase que pretende ser um beijo.

Excitação é quando os beijos estão desatinados pra sair de sua boca depressa.
Desatino é um desataque de prudência.

Prudência é um buraco de fechadura na porta do tempo.
Lucidez é um acesso de loucura ao contrário.

Razão é quando o cuidado aproveita que a emoção está dormindo e assume o mandato.
Emoção é um tango que ainda não foi feito.

Ainda é quando a vontade está no meio do caminho.
Vontade é um desejo que cisma que você é a casa dele.
Desejo é uma boca com sede.
Paixão é quando apesar da placa "perigo" o desejo vai e entra.
Amor é quando a paixão não tem outro compromisso marcado. Não. Amor é um exagero... Também não. É um desadoro... Uma batelada? Um enxame, um dilúvio, um mundaréu, uma insanidade, um destempero, um despropósito, um descontrole, uma necessidade, um desapego?
Talvez porque não tivesse sentido, talvez porque não houvesse explicação, esse negócio de amor ela não sabia explicar, a menina.

Adriana Falcão, "Mania de Explicação" (2001)

domingo, 13 de abril de 2008

alice in wonderland

para minha menina-flor Leilão de jardim

Quem me compra um jardim com flores?
borboletas de muitas cores,

lavadeiras e passarinhos,

ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?

Quem me compra um raio de sol?

Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?

E este sapo, que é jardineiro
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?
(Este é meu leilão!)


Cecília Meireles, "Ou Isto ou Aquilo" (1964)

sábado, 12 de abril de 2008

aquarius

Devora-me ou te decifro


Millôr Fernandes

about family


Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue.

Adriana Falcão

sexta-feira, 11 de abril de 2008

today's fortune

There is truly nothing holding you back now, so get out of your own way. Trust the flow and it will carry you along toward greater possibilities than you currently realize.

slippery when wet

Quem anda no trilho é trem de ferro,
sou água que corre entre pedras:
liberdade caça jeito.

Manoel de Barros

get well, sister

If you're going through hell,
keep going.


Winston Churchill

quinta-feira, 10 de abril de 2008

olhos nos olhos

Maria Bethania e Chico Buarque

para alguém que gostaria de voltar...

quando você me deixou, meu bem
me disse pra ser feliz e passar bem
quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
mas depois, como era de costume, obedeci
quando você me quiser rever
já vai me encontrar refeita, pode crer
olhos nos olhos
quero ver o que você faz
ao sentir que sem você eu passo bem demais
e que venho até remoçando
me pego cantando, sem mais, nem por quê
tantas águas rolaram
quantos homens me amaram
bem mais e melhor que você
quando talvez precisar de mim
você sabe que a casa é sempre sua, venha sim (NÃO!)
olhos nos olhos
quero ver o que você diz
quero ver como suporta me ver tão feliz

Chico Buarque

eros e psiquê

para alguém que nem chegou...

conta a lenda que dormia
uma princesa encantada
a quem só despertaria
um infante, que viria
de além do muro da estrada

ele tinha que, tentado,
vencer o mal e o bem,
antes que, já libertado,
deixasse o caminho errado
por o que à princesa vem.

a princesa adormecida,
se espera, dormindo espera,
sonha em morte a sua vida,
e orna-lhe a fronte esquecida,
verde, uma grinalda de hera.

longe o infante, esforçado,
sem saber que intuito tem,
rompe o caminho fadado,
ele dela é ignorado,
ela para ele é ninguém.

mas cada um cumpre o destino –
ela dormindo encantada,
ele buscando-a sem tino
pelo processo divino
que faz existir a estrada.

e, se bem que seja obscuro

tudo pela estrada fora,
e falso, ele vem seguro,
e vencendo estrada e muro,
chega onde em sono ela mora,

e, inda tonto do que houvera,
à cabeça, em maresia,
ergue a mão, e encontra hera,
e vê que ele mesmo era
a princesa que dormia.

Fernando Pessoa, "Presença" (1934)

quarta-feira, 9 de abril de 2008

puzzle

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.


Manoel de Barros, “Livro sobre Nada” (1997)

ta douleur

lève toi c'est décidé
laisse-moi te remplacer
je vais prendre ta douleur
doucement sans faire de bruit
comme on reveille la pluie
je vais prendre ta douleur
elle lutte elle se débat
mais ne resistera pas
je vais bloquer l'ascenseur...
saboter l'interrupteur
mais c'est qui cette incrustée
cet orage avant l'été
sale chipie de petite soeur ?
je vais tout lui confisquer
ses flechèttes et son sifflet
je vais lui donner la fessée...
la virer de la récrée
mais c'est qui cette héritière
qui se baigne qui se terre
dans l'eau tiède de tes reins ?
je vais la priver de dessert
lui faire mordre la poussière
de tous ceux qui n'ont plus rien...
de tous ceux qui n'ont plus faim
dites moi que fout la science
a quand ce pont entre nos panses ?
si tu as mal la ou t'as peur
tu n'as pas mal la ou je pense !
qu'est-ce qu´elle veut cette conasse
le beurre ou l'argent du beurre
que tu vives ou que tu meurs ?
faut qu'elle crève de bonheur
ou qu'elle change de godasses
faut qu'elle croule sous les fleurs
change de couleur...
je vais jouer au docteur
dites moi que fout la science
a quand ce pont entre nos panses ?
si tu as mal la ou t'as peur
tu n'as pas mal là où je chante !

Camille

furtei... do gu


Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.

Sou formado em desencontros.

A sensatez me absurda.

Os delírios verbais me terapeutam.

Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).

(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que apareceu Flores do Mal. A beleza e a dor. Essa antítese o acalmou.)

As antíteses congraçam.


Manoel de Barros, “Livro sobre Nada” (1997)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

ode ao gato

Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça vôo.
O gato,
só o gato apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,

não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa
só como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite.
Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gato, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.


Pablo Neruda, “Navegaciones y Regresos” (1959)