quarta-feira, 26 de novembro de 2008

do sentimento de não estar de todo



Jamais réel et toujours vrai

(num desenho de Antonin Artaud)




Sempre serei criança para muitas coisas, mas dessas crianças que trazem e si o adulto desde o princípio, de maneira que quando o monstrinho vira realmente um adulto acontece que este por sua vez traz em si a criança, e nel mezzo del camin se dá uma coexistência poucas vezes pacífica de ao menos duas aberturas para o mundo.


Isto pode ser entendido metaforicamente, mas de qualquer modo indica um temperamento que não renunciou à visão pueril como preço da visão adulta, e essa justaposição que caracteriza o poeta e talvez o criminoso e também o cronópio e o humorista (questão de dosagens diferentes, de acentuação paroxítona ou proparoxítona, de escolhas: agora eu jogo, agora eu mato) se manifesta no sentimento de não estar totalmente em qualquer das estruturas, das teias que a vida constrói e onde somos ao mesmo tempo aranha e mosca.


Muito do que escrevi se classifica sob o signo da excentricidade, porque nunca admiti uma clara diferença entre viver e escrever; se ao viver consigo disfarçar uma participação parcial em minhas circunstâncias, não posso porém negá-la no que escrevo porque escrevo precisamente por não estar ou por estar só na metade. Escrevo por incapacidade, por descolocação; e como escrevo num interstício, estou sempre propondo que outros procurem os seus e por dentro eles olhem o jardim onde as árvores têm frutos que são, naturalmente, pedras preciosas. O monstrinho continua firme.


Esta espécie de constante lúdica explica, senão justifica, muito do que escrevi ou vivi. Acusam meus romances – esse jogo na beira da janela, esse fósforo ao lado da garrafa de gasolina, esse revólver carregado na mesa-de-cabeceira – de serem uma busca intelectual do próprio romance, algo assim como um comentário contínuo da ação e muitas vezes a ação de um comentário. Não tenho a menor vontade de argumentar a posteriori que, ao longo dessa dialética mágica, um homem-criança está lutando para arrematar o jogo de sua vida: que sim, que não, que assim está. Pois será que um jogo, olhando bem, não é um processo que parte de uma descolocação para chegar a uma colocação, a uma situação – gol, xeque-mate, cabra-cega? Não será uma cerimônia que se encaminha para a fixação final que a coroa?


O homem do nosso tempo acredita facilmante que sua informação filosófica e histórica o salva do realismo ingênuo. Em conferências universitárias e em conversas de bar ele chega a admitir que a realidade não é o que parece e está sempre disposto a reconhecer que seus sentidos o enganam e que sua inteligência lhe fabrica uma visão tolerável porém incompleta do mundo. Cada vez que pensa metafisicamente se sente "mais triste e mais sábio", porém sua admissão é momentânea e excepcional, ao passo que o contínuo da vida o instala por inteiro na aparência, concretizando-a em torno dele e vestindo-a de definições, funções e valores. Esse homem é um ingênuo realista mais do que um realista ingênuo. Basta observar seu comportamento diante do excepcional, do insólito: ou o reduz a fenômeno estético ou poético ("era uma coisa realmente surrealista, juro") ou desiste logo de indagar na entrevisão proporcionada por um sonho, um ato falho, uma associação verbal ou causal fora do comum, uma coincidência perturbadora, qualquer das fraturas instantâneas do contínuo. Se perguntarem, dirá que não acredita por inteiro na realidade cotidiana e que só a aceita de pragmaticamente. Mas acredita sim, e como. Só acredita nela. Seu sentido da vida se parece com o mecanismo de seu olhar. Às vezes, ele tem uma efêmera consciência de que a cada tantos segundos as pálpebras interrompem a visão que sua consciência decidiu entender como permanente e contínua; mas quase de imediato as piscadas voltam a ser inconscientes, o livro ou a maçã se fixam em sua obstinada aparência. Há uma espécie de acordo de cavalheiros entre a circunstância e os circunstanciados: você não me tira dos meus hábitos e eu não fico te cavucando com um palito. Mas agora acontece que o homem-criança não é um cavalheiro e sim um cronópio que não entende bem o sistema de linhas de fuga graças às quais se cria uma perspectiva satisfatória dessa circunstância, ou então, como acontece nas collages mal resolvidas, sente-se numa escala diferente em relação à escala da circunstância, uma formiga que não cabe num palácio ou um número quatro no qual só cabem três ou cinco unidades. Comigo isto ocorre palpavelmente, às vezes sou maior do que o cavalo que monto e noutros dias caio num de meus sapatos e levo uma tremenda pancada, sem falar no trabalho para sair, nas escadas fabricadas nó a nó com os cadarços e a terrível descoberta, já na beirada, de que alguém guardara o sapato num armário e que estava pior que Edmond Dantés no castelo de If porque nos armários da minha casa nem sequer há um abade à mão.


E gosto disso, e sou terrivelmente feliz no meu inferno, e escrevo. Vivo e escrevo ameaçado por essa lateralidade, por essa paralaxe verdadeira, esse estar sempre um pouco mais à esquerda ou mais ao fundo do lugar onde deveria estar para que tudo encaixasse satisfatoriamente em mais um dia de vida sem conflitos. Desde muito pequeno assumi com os dentes apertados essa condição que me afastava de meus amigos e ao mesmo tempo os atraía para o estranho, o diferente, para aquele que botava o dedo no ventilador. eu não estava destituído de felicidade; a única condição era que coincidir às vezes (o colega, o tio excêntrico, a velha maluca) com outro que também não coubesse direito nos próprios documentos, e evidentemente não era fácil; mas logo descobri os gatos, nos quais podia imaginar minha própria condição, e os livros, onde a encontrava por inteiro. Naquele tempo eu poderia dizer para mim mesmo os versos talvez apócrifos de Poe:


From childhood´s hour I have not been

As others were; I have not seen

As others saw; I could not bring

My passions from a common spring –


Mas aquilo que para o virginiano era um estigma (luciferino, mas por isso mesmo monstruoso) que o isolava e condenava,


And all I loved, I loved alone


não me divorciou daqueles cujo redondo universo eu só compartilhava tangencialmente. Hipócrita sutil, aptidão para todos os mimetismos, ternura que transbordava os limites e os ocultava de mim; as surpresas e as aflições da primeira idade se tingiam de ironia amável. Lembro: aos onze anos emprestei a um colega O segredo de Wilhelm Storitz, onde Julio Verne me propunha como sempre um intercâmbio natural e profundo com uma realidade nada dessemelhante à cotidiana. Meu amigo me devolveu o livro: "Não cheguei ao final, é fantástico demais". Jamais vou renunciar à surpresa escandalizada desse minuto. Fantástica, a invisibilidade de um homem? Então só podíamos nos encontrar no futebol, no café com leite, nas primeiras confidências sexuais?


Adolescente, pensei como tantos que meu contínuo estranhamento era um sinal anunciador do poeta e escrevi os poemas que se escrevem então e que sempre são mais fáceis de escrever que a prosa nessa altura da vida que repete no indivíduo as fases da literatura. Com o passar dos anos descobri que, se todo poeta é um estranhado, nem todo estranhado é poeta na acepção genérica do termo. Estamos aqui em terreno polêmico, que entre na dança quem quiser. Se entendemos funcionalmente por poeta aquele que escreve poemas, sua razão para escrevê-los (não se discute a qualidade) nasce de que seu estranhamento como pessoa suscita sempre um mecanismo de challenge and response; assim, toda vez que o poeta é sensível à sua lateralidade, à sua situação extrínseca numa realidade aparentemente intrínseca, reage poeticamente (quase diria profissionalmente, sobretudo a partir de sua maturidade técnica); em outras palavras, escreve poemas que são algo como petrificações desse estranhamento, aquilo que o poeta vê ou sente em lugar de, ou ao lado de, ou por baixo de, ou ao contrário de, remetendo este de ao que os outros vêem tal como pensam que é, sem deslocamento nem crítica interna. Duvido que exista um único grande poema que não tenha nascido desse estranhamento ou que não a traduza; e mais, que não o ative ou o potencialize ao suspeitar que é precisamente a zona intersticial por onde é preciso aceder. Também o filósofo se estranha e se desloca deliberadamente para descobrir as fissuras do aparencial, e sua busca nasce igualmente de um challenge and response; em ambos os casos, embora os fins sejam diferentes, há uma resposta instrumental, uma atitude técnica diante de um objeto definido.


Mas já vimos que nem todos os estranhados são poetas ou filósofos profissionais. Quase sempre começam sendo ou querendo sê-lo, mas chega o dia em que percebem que não podem ou não são obrigados a dar essa response quase fatal que é o poema ou a filosofia frente ao challenge do estranhamento. Sua atitude torna-se defensiva, egoísta talvez, pois se trata de preservar antes de mais nada a lucidez, resistir à dissimulada deformação que a cotidianidade codificada vai montando na consciência com a ativa participação da inteligência raciocinante, os meios de comunicação, o hedonismo, a arterioesclerose e o casamente inter alia. Os humoristas, alguns anarquistas, não poucos criminosos e um bom número de contistas e romancistas situam-se neste setor pouco definível em que a condição de estranhado não provoca necessariamente uma resposta de ordem poética. Estes poetas não-profissionais suportam seu deslocamento com maior naturalidade e menor brilho, e poder-se-ia mesmo dizer que sua noção do estranhamento é lúdica em comparação com a resposta lírica ou trágica do poeta. Enquanto este está sempre em combate, os simplesmente estranhados se integram na excentricidade a tal ponto que o excepcional dessa condição, que suscita o challenge para o poeta ou o filósofo, tende a tornar-se condição natural do sujeito estranhado, que assim quis e por isso adequou sem comportamento àquela paulatina aceitação. Penso em Jarry, num lento intercâmbio baseado em humor, ironia, familiaridade, que termina inclinando a balança do lado das exceções, anulando a diferença escandalosa entre o sólito e o insólito, e permite a passagem cotidiana, sem response concreta porque já não há challenge, para um plano que por falta de melhor nome continuaremos chamando realidade, mas sendo mais um flatus vocis ou um melhor que nada.


(Julio Cortazar, A Volta ao Dia em 80 Mundos, Tomo I)

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

sagesse...


os livros sabem de tudo

paulo leminski