segunda-feira, 31 de março de 2008

bad mood II

monday mood – about wait

Se você não demorar muito,
posso esperá-lo por toda a minha vida.

Oscar Wilde

Presume-se que a mulher deve esperar,
imóvel, até ser cortejada.
Mais ou menos como a aranha espera a mosca.

George Bernard Shaw

monday mood – about life

Viver é a coisa mais rara do mundo.
A maioria das pessoas apenas existe
.

Oscar Wilde

As pessoas mais interessantes são os homens que têm futuro
e as mulheres que têm passado.

Oscar Wilde

monday mood – about people

Não tenho preconceitos, odeio a todos igualmente.

George Bernard Shaw

O mundo pode ser um palco.
Mas o elenco é um horror.

Oscar Wilde

domingo, 30 de março de 2008

contranarciso

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

Paulo Leminski, "Caprichos e Relaxos" (1983)

O Atleticano


O Atleticano é diferente de qualquer outro torcedor
É diferente, pois não se restringe a ser somente torcedor
Ser Atleticano é como casamento
Na saúde e na doença
Nas alegrias e nas tristezas
Mesmo quando a doença parece não ir
E as tristezas teimam em permanecer
O Atleticano é capaz de após uma derrota humilhante
Pegar a camisa no armário e sair às ruas
Mesmo sendo alvo de piadas
Isso porque o Atleticano não torce por um time
Torce por uma nação
E tal qual em uma guerra
Um cidadão não renega um país
Mesmo que a derrota seja grande
O Atleticano apóia o seu time na derrota
Pois os obstáculos engrandecem...
E que me perdoem os que têm apenas títulos
Claro que são importantes...
Mas o Atleticano tem algo que os outros nunca terão...
TEM PAIXÃO!

Roberto Drummond

Ser Atleticano



Se houver uma camisa branca e preta pendurada no varal
durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento.
Ah, o que é ser atleticano?
É uma doença?
Doidivana paixão?
Uma religião pagã?
Benção dos céus?
É a sorte grande?
O primeiro e único mandamento do atleticano é ser fiel
e amar o Galo sobre todas as coisas.
Daí que a bandeira atleticana cheira a tudo neste mundo.
Cheira ao suor da mulher amada.
Cheira a lágrimas.
Cheira a grito de gol.
Cheira a dor.
Cheira a festa e a alegria.
Cheira até mesmo a perfume francês.
Só não cheira a naftalina,
pois nunca conhece o fundo do baú, trêmula ao vento.
A gente muda de tudo na vida.
Muda de cidade.
Muda de roupa.
Muda de partido político.
Muda de religião.
Muda de costume.
Até de amor a gente muda.
A gente só não muda de time, quando ele é uma tatuagem com as iniciais C.A.M.,
do Clube Atlético Mineiro,
gravado no coração.
É um amor cego e tem a cegueira da paixão.
Já vi o atleticano agir diante do clube amado
com o desespero e a fúria dos apaixonados.
Já vi atleticano rasgar a carteira de sócio do clube e jurar:
— Nunca mais torço pelo Galo!
Já vi atleticano falar assim, mas, logo em seguida,
eu o vi catar os pedaços da carteira rasgada e colar,
como os amantes fazem com o retrato da amada.
Que mistério tem o Atlético que às vezes parece que ele é gente?
Que a gente o associa às pessoas da família
(pai, mãe, irmão, filho, tio, prima)?
Que a gente confunde com a alegria que vem da mulher amada?
Que mistério tem o Atlético que a gente confunde com uma religião?
Que a gente sente vontade de rezar "Ave Atlético, cheio de Graça?"
Que a gente o invoca como só invoca um santo de fé?

Roberto Drummond

Oração do Atleticano

Senhor:
apague o sol,
apague a lua,
anoiteça os olhos da amada,
mas não deixe o Atlético capitular.
Não deixe, Senhor, o adversário passar,
não deixe nosso goleiro vacilar.
Dê asas de pássaros ao goleiro,
dê os braços dos amantes ao goleiro,
faça-o abraçar esse pássaro sem asas
como se fosse a mulher mais esperada,
mais desejada,
mais sonhada,
mais amada,
mais adiada.

Senhor:
tire o pão nosso de cada dia,
corte nossa água,
nos condene à fome e à sede,
proíba nossos amores,
exile as amadas na China
ou na Conchinchina,
decrete a solidão
nas esquinas, nos bares e
em nosso coração;
faça de nós, Senhor,
um bolero
faça de nós um tango,
faça de nós uma guarânia,
ou uma balada,
faça de nós a mais desesperada canção,
nos mate não apenas da sede de água,
mas da sede da boca da amada,
mas transforme nossa defesa
num muro,
numa barreira
numa trincheira,
num obstáculo intransponível.
Mate a todos nós da fome de amor,
que é pior que a fome de verdade,
mas não deixe, Senhor,
o adversário passar.

Senhor:
dispare a inflação,
mingüe nosso feijão,
aprisione nossa ilusão,
prenda de vez nosso coração,
mas espalhe luz
sobre os caminhos do Atlético,
sobre a grama verde onde pisam
nossos heróis.
Acenda uma estrela na chuteira deles
e não deixe, Senhor, o adversário passar.
Não deixe o Atlético capitular.
Senhor:
nos faça descobrir o amor,
para depois tirá-lo de nós.
Faça-nos sofrer de amor,
mate-nos de amor, se preciso,
mas quando nosso atacante pegar a bola,

Senhor,
iluminado seja o seu caminho,
cheio de estrelas e de dribles,
e de passes mágicos e de cruzamentos,
e de gols seja feito o seu caminho,
encantada seja sua chuteira,
e que nos seus pés,
na sua cabeça
bendita seja a vitória do Atlético.
E depois de tudo, Senhor,
depois que o Atlético cantar,
aí, Senhor, se julgar necessário
nos tomar algum fruto
após tanta recompensa,
prive-nos de tudo que quiser,
exile a amada no Equador,
e, outra vez, Senhor,
nos mate de amor,
mas não deixe o adversário passar.

Roberto Drummond

sábado, 29 de março de 2008

de volta

... sem internet ...

segunda-feira, 24 de março de 2008

bad mood

(mais) um dia Millôr Fernandes


O humor compreende também o mau humor.
O mau humor é que não compreende nada.

De todas as taras sexuais, não existe
nenhuma mais estranha do que a abstinência.

Viver é desenhar sem borracha.

Certas coisas só são amargas se a gente as engole.
Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem.

Não devemos resistir às tentações:
elas podem não voltar.

Democracia é quando eu mando em você,
ditadura é quando você manda em mim.

O dinheiro não dá felicidade.
Mas paga tudo o que ela gasta.

Quando todo mundo quer saber
é porque ninguém tem nada com isso.

Em geral as pessoas que se perdem em pensamentos
é porque não conhecem muito bem esse território.

domingo, 23 de março de 2008

O Menino Azul

Pro Dudu, menino azul que sabe ler demais...


O menino quer um burrinho

para passear.

Um burrinho manso,

que não corra nem pule,

mas que saiba conversar.


O menino quer um burrinho

que saiba dizer

o nome dos rios,

das montanhas, das flores,

— de tudo o que aparecer.


O menino quer um burrinho

que saiba inventar histórias bonitas

com pessoas e bichos

e com barquinhos no mar.


E os dois sairão pelo mundo

que é como um jardim

apenas mais largo

e talvez mais comprido

e que não tenha fim.


(Quem souber de um burrinho desses,

pode escrever

para a Ruas das Casas,

Número das Portas,

ao Menino Azul que não sabe ler.)


Cecília Meireles, "O Menino Azul"

Odoyá Minha Mãe Yemanjá

Iemanjá Rainha do Mar

quanto nome tem a Rainha do Mar?
quanto nome tem a Rainha do Mar?

Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá,
Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá.

onde ela vive?
onde ela mora?

nas águas,
na loca de pedra,
num palácio encantado,
no fundo do mar.

o que ela gosta?
o que ela adora?

perfume,
flor, espelho e pente
toda sorte de presente
pra ela se enfeitar.

como se saúda a Rainha do Mar?
como se saúda a Rainha do Mar?

Alodê, Odofiaba,
Minha-mãe, Mãe-d'água,
Odoyá!

qual é seu dia,
Nossa Senhora?

é dia dois de fevereiro
quando na beira da praia
eu vou me abençoar.

o que ela canta?
por que ela chora?

só canta cantiga bonita
chora quando fica aflita
se você chorar.

quem é que já viu a Rainha do Mar?
quem é que já viu a Rainha do Mar?

pescador e marinheiro
que escuta a sereia cantar
é com o povo que é praiero
que dona Iemanjá quer se casar

Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro



sábado, 22 de março de 2008

fever


never know how much I love you
never know how much I care
when you put your arms around me
I get a fever that’s so hard to bear

you give me fever when you kiss me
fever when you hold me tight
fever in the morning
fever all through the night.

everybody’s got the fever
that is something you all know
fever isn’t such a new thing
fever started long ago

sun lights up the daytime
moon lights up the night
I light up when you call my name
and you know I’m gonna treat you right

you give me fever when you kiss me
fever when you hold me tight
fever in the morning
fever all through the night

romeo loved juliet
juliet she felt the same
when he put his arms around her
he said julie, baby, you’re my flame
thou give fever when we kissed
fever with the flaming youth
lfever I’m a fire
fever yea I burn forsooth

captain smith and pocahontas
had a very mad affair
when her daddy tried to kill him
she said daddy, o, don’t you dare
he gives me fever with his kisses
fever when he holds me tight
fever, I’m his misses,
oh daddy, won’t you treat him right

now you’ve listened to my story
here’s the point that I have made
cats were born to give chicks fever
be it fahrenheit or centigrade

they give you fever when you kiss them
fever if you live and learn
fever till you sizzle
what a lovely way to burn
what a lovely way to burn
what a lovely way to burn

John Davenport & Eddie Coole

sexta-feira, 21 de março de 2008

el duelo

La Ley & Ely Guerra – unplugged…



La Ley & Ely Guerra – plugged!!




el duelo

con una lagrima de fe sobre tu piel
olvide la grieta que dejo tu amor
pero ese instinto taurino de tu ser
me obligo a azotarte tiernamente

sin dolor no te haces feliz
sin dolor no te haces feliz
sin amor...
no sufres más

toda esa noche provocaste ver en mí
lo que a nadie muestro en la intimidad
pero ese tipo de mirada que hay en ti
me obligo a matarte lentamente

sin dolor no te haces feliz
sin dolor no te haces feliz

sin amor...
lentamente / tiernamente

sin dolor no te haces feliz
sin dolor no te haces feliz
sin amor...
no sufres más

quinta-feira, 20 de março de 2008

para uma avenca partindo

Eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou de tardes, ou de manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor, não é? pois isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando numa porção de coisas que eu ia te dizer depois, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis que precisam ser ditas, não faça essa cara de espanto, elas são realmente terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, se você teria, não sei, disponibilidade suficiente para ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar é só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?




para uma avenca partindo

Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos conta, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista para você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente em nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ... ...... ....... ..... ..... ...... ....... ..... ...... ...... ..... .... .... ....... .... ..... .... ... .... .... .... ... ... ..... ... .... ..... ... .... .... ...... ...... ...... ........ ..... sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

Caio Fernando Abreu, “O Ovo Apunhalado” (1975)

Clarice...

Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor.
Que tem que ser vivido até a última gota.
Sem nenhum medo. Não mata.

yo quiero ser una chica almodóvar



yo quiero ser una chica almodóvar

como la maura, como victoria abril
un poco lista, un poquitin boba,
ir con madonna en una limousine.

yo quiero ser una chica almodóvar

como bibí, como miguel bosé
pasar de todo y no pasar de moda,
bailar contigo el último cuplé.

y no parar de viajar del invierno al verano,

de madrid a new york, del abrazo al olvido,
dejarte entre tinieblas escuchando un ruido
de tacones lejanos.

encontrar la salida de este gris laberinto,

sin pasión ni pecado, ni locura ni incesto,
tener en cada puerto un amante distinto
no gritar ¿que he echo yo, para merecer esto?

yo quiero ser una chica almodóvar

como pepi, como luci como boom
venderle al garbo mis secretos de alcoba,
ponerme luto por un matador.

yo quiero ser una chica almodóvar
que a su chico le suplique ¡átame!
no dar el alma sino a quien me la roba,
desayunar en tiffany’s con él.

y no permitir que me coman el coco
esas chungas movidas de croatas y serbios
ir por la vida al borde de un ataque de nervios,
con faldas y a lo loco.

encontrar la salida de este gris laberinto,

sin pasión ni pecado, ni locura ni incesto,
tener en cada puerto un amante distinto
no gritar ¿que he echo yo, para merecer esto?

como patti diphusa escribir mis memorias,

apuntarme a cualquier clase de bombardeo
no tener otra fe que la piel, ni más ley
que la ley del deseo.

encontrar la salida de este gris laberinto,

sin pasión ni pecado, ni locura ni incesto,
tener en cada puerto un amante distinto
no gritar ¿que he echo yo, para merecer esto?

Joaquín Sabina

quarta-feira, 19 de março de 2008

cores refletidas


ou ... outro retrato

O raso eu escavo até corroer as unhas, sangrar a carne. E no profundo, o contentamento é o estranho que me dilacera em outra. O medo eu mastigo e guardo para transformar la dulce vida na minha cara, imagem e semelhança: ora negro, ora néon; monóxido de carbono, cicuta, girassol, poison, rojo, vertigem, língua... mas o raso, esse eu escavo.

KFC, 01.02.2008

Retrato


Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles, “Antologia Poética” (1963)

o amor bate na aorta

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlitos.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem

o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

Carlos Drummond de Andrade, “Brejo das Almas” (1934)

furta cor

cavar cavar cavar
roer esvaziar quebrar as unhas
alma furta-cor? furta cor?
todas elas? refletidas
para quem as vê?
eterno espelho para voyeurs
e eros desencarnados
buscando encontrar sua psiquê

pisco
fico
calo
quedo
cedo

até quando?

espelho
espalha

roda roda roda e avisa
um minuto pro comercial

raso raso raso

rosa
preto e branco
negro
buraco negro
via láctea
brilho ou sombra?

dentro fora avesso
avessa
a pessoas
a convenções
a papéis e planos e flores nas janelas e caixas de correio e anões de jardim e scripts e roteiros e histórias com fim

NRA, 09.02.08

com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.
Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado, "Bagagem" (1976)

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido
como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade, "Alguma Poesia" (1930)