quarta-feira, 17 de junho de 2009

estou cansado


estou cansado, é claro,

porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

de que estou cansado, não sei:

de nada me serviria sabê-lo,

pois o cansaço fica na mesma.

a ferida dói como dói

e não em função da causa que a produziu.

sim, estou cansado,

e um pouco sorridente

de o cansaço ser só isto —

uma vontade de sono no corpo,

um desejo de não pensar na alma,

e por cima de tudo uma transparência lúcida

do entendimento retrospectivo...

e a luxúria única de não ter já esperanças?

sou inteligente; eis tudo.

tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,

e há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,

que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.


Álvaro de Campos (Poemas, 1923)

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