tenho tanto sentimento
tenho tanto sentimento
que é freqüente persuadir-me
de que sou sentimental,
mas reconheço, ao medir-me,
que tudo isso é pensamento,
que não senti afinal.
temos, todos que vivemos,
uma vida que é vivida
e outra vida que é pensada,
e a única vida que temos
é essa que é dividida
entre a verdadeira e a errada.
qual porém é a verdadeira
qual errada, ninguém
nos saberá explicar;
e vivemos de maneira
que a vida que a gente tem
é a que tem que pensar.
autopsicografia
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
e os que lêem o que escreve,
na dor lida sentem bem,
não as duas que ele teve,
mas só a que eles não têm.
e assim nas calhas de roda
gira, a entreter a razão,
esse comboio de corda
que se chama coração.
Fernando Pessoa, Cancioneiro, 1933
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