estou cansado, é claro,
porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
de que estou cansado, não sei:
de nada me serviria sabê-lo,
pois o cansaço fica na mesma.
a ferida dói como dói
e não em função da causa que a produziu.
sim, estou cansado,
e um pouco sorridente
de o cansaço ser só isto —
uma vontade de sono no corpo,
um desejo de não pensar na alma,
e por cima de tudo uma transparência lúcida
do entendimento retrospectivo...
e a luxúria única de não ter já esperanças?
sou inteligente; eis tudo.
tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
e há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
Álvaro de Campos (Poemas, 1923)
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