segunda-feira, 14 de julho de 2008

os ombros suportam o mundo

para alguém

que não vai ler...




chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
tempo de absoluta depuração.
tempo em que não se diz mais: meu amor.
porque o amor resultou inútil.
e os olhos não choram.
e as mãos tecem apenas o rude trabalho.
e o coração está seco.

em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
és todo certeza, já não sabes sofrer.
e nada esperas de teus amigos.

pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
as guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
chegou um tempo em que não adianta morrer.
chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
a vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo, 1940

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